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A revolta das vísceras e outros textos

Mariluce Moura

A revolta das vísceras e outros textos, da jornalista e pesquisadora baiana Mariluce Moura, radicada desde 1989 em São Paulo, traz como carro-chefe o romance que dá nome ao livro. Segundo colocado na categoria romance inédito no prêmio da editora José Olympio em 1981, narra com prosa moderna e envolvente a história da jovem militante Clara. Inspirado na própria experiência de Mariluce, viúva de Gildo, o livro foi publicado em 1982 pela editora Codecri. Esse raro relato romanceado de um ponto de vista feminino sobre a vida na ditadura foi objeto, na década passada, da pesquisa de doutorado de Cris Lira, pela Universidade da Georgia. A entrevista de Mariluce a Cris, que assina o prefácio, é um dos outros textos mencionados no título. O livro traz ainda reflexões da autora escritos durante sua prisão, antes e depois da morte do marido, além de artigos e entrevistas para diferentes veículos e apresentação do militante e ex-deputado federal Emiliano José.

260 páginas
Categoria:

R$ 60,00

Sobre A autora

Mariluce Moura
Mariluce Moura é baiana de Salvador, da safra de novembro de 1950. Radicada em São Paulo desde 1989, é jornalista, dedicada aos assuntos de ciência desde 1988. Entre outras aventuras, criou a revista Pesquisa Fapesp, da qual foi diretora por longo tempo, e o Instituto Ciência na Rua, do qual é diretora. É professora titular aposentada da UFBA. Tem duas filhas, um filho, três netas e dois netos.

Críticas & comentários

PREFÁCIO

“Só o retorno não é possível”

Cris Lira Em “Mulheres guerrilheiras: A representação de personagens femininas em narrativas brasileiras e argentinas relacionadas às ditaduras ocorridas entre 1964 e 1985,” tese de doutorado que defendi em 2016, explico que quando a minha pesquisa começou, motivada pelo encontro com personagens mulheres sempre envolvidas com a luta armada a partir da presença de um relacionamento afetivo com um guerrilheiro, eu desejava encontrar o maior número de representações dessa figura para comparar perfis, especialmente, para compreender melhor a construção dessas mulheres por e a partir de homens. Teriam elas sido apenas iniciadas nos movimentos de luta contra a ditadura militar pela via do amor? Seriam essas narrativas apenas um eco de uma primeva que geralmente condiciona as mulheres a um segundo plano? Minha primeira hipótese, ao examinar não apenas textos considerados ficcionais, como As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles, mas também obras classificadas como testemunho, formou-se a partir da ideia de que o imaginário em torno das memórias da repressão era majoritariamente masculino porque as mulheres que haviam participado na luta contra a ditadura militar não haviam registrado suas memórias como acontecera com obras de grande popularidade no período, algumas delas, aliás, adaptadas para filmes com sucesso de bilheteria e no estilo exportação. Intrigava-me que houvesse um claro recorte de gênero nas elaborações do nosso passado ditatorial e foi em busca de material que encontrei não apenas o livro que agora você, leitora, tem em mãos, como muitos outros que não tiveram êxito de vendas ou foram publicados por pequenas editoras com tiragem muito limitada. Em vista disso, o encontro com A revolta das vísceras, de Mariluce Moura, foi um achado. Além disso, entregava-me uma promessa, desde a capa, onde se lia que era “uma visão feminina da luta armada no Brasil. Uma história de paixão e morte.” Ter a oportunidade de vislumbrar o que foi a luta armada no Brasil, a partir da perspectiva de uma mulher, centralizava a figura da guerrilheira, alvo da minha pesquisa, o que me ajudaria a compreender como essa figura havia sido representada e, de certo modo, cristalizada no imaginário cultural brasileiro. Terminada a primeira leitura, porém, constatei que a premissa da capa não se concretizava e foi então que percebi que precisava entrevistar a autora para saber mais sobre o contexto de feitura do livro. Em nossa primeira conversa, ainda por e-mail, Moura afirmou, “deixe-me desde já corrigir um erro crasso do subtítulo do livro,” destacando que o romance não tinha ligação direta à luta armada. De fato, esse livro não me deu a guerrilheira que eu esperava, mas ajudou-me a compreender melhor os processos pelos quais a memória e o imaginário coletivo se constroem. Para quem viveu o tempo de Anos rebeldes na TV, assistiu à adaptação de Macunaíma para o cinema, viu filmes baseados em testemunhos do período, já conhece a loura da metralhadora, ou, como menciona Herbert Daniel em Passagem para o próximo sonho (1982), “a loura dos assaltos era um tesão e tesava.” Assim, já teve acesso, por meio dessas construções, a representações de jovens militantes, guerrilheiras e guerrilheiros, seus destinos, todos mais ou menos engessados em figuras que nem sempre – ou quase nunca – são reais. Neste romance que tem em mãos, porém, Mariluce Moura traz o real para o centro da narrativa e cria um texto comprometido em narrar o inenarrável, demonstrando preocupação apenas em, por meio da escrita, processar uma perda, a sombra sobre a qual a voz narrativa fala ao criar Clara e sua tentativa de existir diante de um tempo, um espaço, no qual boa parte de seus 20 anos estão para sempre aprisionados em um quarto amarelo. Narrar, nesse sentido, é, em si, uma forma de resistência, um modo de processar o luto, a ausência, além de se posicionar como uma negação à perpetuação de estereótipos sobre o período e seus protagonistas. Ao tratar, em diversos momentos do romance, da impossibilidade de reconstrução, seja do passado, seja do vivido, seja do que ainda há para se viver, e valer-se da escrita como processo, por meio da carta tecida pela personagem, vemos como o livro permite que se crie um itinerário para lidar com o passado: primeiro, não se pode esquecer. A vida tem seus próprios movimentos, o corpo da protagonista que o diga com a gravidez que insiste em ser pulsão de vida, mas também é preciso viver a dor, sentir a raiva, deixar que o vômito se espalhe e contamine tudo porque não há reparação sem que se reconheçam as rachaduras, os fragmentos, o que há para ser preenchido, reparado. Publicado originalmente em 1982, A revolta das vísceras continua um livro dolorosamente atual em um país que tem uma das polícias mais violentas do mundo, resquício do período ditatorial, e que, diferente de outros países na América Latina, não ajustou as contas com a repressão de estado, pelo contrário, elegeu um presidente em 2018 que fazia apologia à tortura. Perto do marco de 60 anos de quando se instaurou uma ditadura civil-militar no Brasil, temos a possibilidade de adentrar a mente multifacetada de Clara, que tenta sobreviver ao tempo ainda estanque no relógio do companheiro que já não está, para vislumbrar diferentes etapas de sua vida e suas tentativas de conviver com uma ausência sempre presente. Se se falava em “uma visão feminina da luta armada no Brasil, uma história de paixão e morte,” o que fica é um relato potente de como a escrita é uma ferramenta para se processar perdas enquanto se cria um documento pujante de resistência. É uma história para despertar, para incomodar, para não esquecer. Pulsão de vida.   Cris Lira (Cristiane Barbosa de Lira) é mestra e doutora em línguas românicas pela Universidade da Georgia, supervisora do programa de português e professora de literatura, língua e cultura na mesma instituição; é escritora, tem quatro livros publicados, entre eles, Fragmentos do interior, de 2021.

“A revolta das vísceras, ao contar a experiência de Mariluce sobre a morte de Gildo Lacerda acaba por também reconstruir a história de Gildo, permitindo que ele continue vivo naquela que narra e naqueles que a leem.”
Maria Claudia Moraes Leite, tese de doutorado, UFRGS, 2023, p.151